Poema & Ensaio

Minha chave vai por todas as fechaduras e abre muitas portas.
A forma da minha chave começa e termina continuamente
às vezes sem ser a chave.
Capturado pelos nazistas, Amadeu conheceu um extremo despojamento, foi privado de tudo. As roupas largas dançavam no seu corpo e os sapatos, tirados de uma pilha sem numeração, feriam seus pés. Vagava pelo campo como um espectro faminto, ia resistindo no ‘avesso do nada’. Mas sempre havia algo a ser descoberto: um papel rasgado que a ventania arrastava, um santinho amassado que alguém esqueceu, um prego sem cabeça, uma chave partida. Ele ia guardando cada um desses fiapos abandonados.
Por exemplo, de um papel rasgado fez um envelope, descreveu no avesso a sua agonia, endereçou ao irmão em Trieste e escondeu-o num buraco do chão. Dois anos depois seu irmão recebia a carta. Alguém a havia encontrado e enviado pelo correio. Quem teria sido? Nunca souberam.
A chave partida que recolheu num ralo e conservou por tanto tempo, ele transformou num instrumento heróico. Quando conduzido para Auschwitz, usou-a como chave de fenda na janelinha do banheiro do trem e daí saltou para a liberdade e para a vida.
BOSI, Éclea. O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social. Pgs. 30-31. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003
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